quarta-feira, 22 de abril de 2020

Há fome!


«E de repente tive mais uma ideia do futuro social do nosso país. Ontem no acompanhamento que faço como voluntário na Comunidade Vida e Paz preparei-me para a noite lendo os relatórios das equipas dos dias anteriores, e vi que no Saldanha os números da distribuição de comida aproximavam-se dos 100, sendo que há dois meses atrás eram entre os 30 e 40. Na Av. Liberdade e adjacentes com mais de 30 pessoas, onde outrora eram menos de 20. 
 Enfim preparei-me para distribuir e acompanhar pouco mais de 140 pessoas. Mas infelizmente a realidade foi outra, foram mais de 160 e o futuro não se avizinha bom! 
 Sabemos que nos abrigos de Lisboa da CML os números diários já se aproximam de 200 pessoas, abrigos esses que fecham no momento que terminar o estado de emergência, e assim vão-se juntar aos mais de 500 pessoas que já vagueiam pela capital de Portugal.

Fome, vi muita, as pessoas choram a pensar que esta pode ser uma das ultimas refeições, pois com tantas incertezas têm medo que as instituições que apoiam as famílias carenciadas e pessoas sem abrigo não sejam um poço sem fundo e que um dia não vão chegar para todos, e, que podem ser preteridos por outra necessidade qualquer.
 Por mais que se tente acalmar as pessoas, a verdade é que nem eu sei o que vai ser o futuro, o meu, a da minha família e amigos, e de toda a nossa comunidade. 

 Há fome! 

 Desde o primeiro dia do estado de emergência que tenho notado isso, é uma nova realidade. 

 Volto a ontem, e ontem, vi pessoas que foram pela primeira vez dormir na rua, e outros que para lá voltaram, uns porque já não têm recursos, amigos ou famílias que apoiem, outros porque saindo das prisões não têm casas para onde ir. Sim pessoas que saíram das prisões sem tectos à sua espera, em alguns casos foi uma transferência de um problema de um lado para outro.
 Pessoas sem mobilidade, de andarilhos, novos, velhos, não há discriminação.
 Duas conversas que me deitaram o coração abaixo, sr X, seropositivo, na rua há vários anos, dizia: “COVID? Isso como doença não nos faz medo, estando na rua há vários anos eu e as outras pessoas que cá andamos se não morremos do frio, da chuva, do calor, das doenças dos companheiros de cartão, não vamos certamente morrer disto, O COVID vai nos matar porque vamos ser esquecidos e estamos no fundo das preocupações das pessoas. 

 Senti-me revoltado porque sei que é mentira, mas também é verdade!

 Outro dizia que queria ir para o abrigo, mas questionava, mas se lá há maior concentração de pessoas, não aumenta o risco de ser infectado?
 Estas pessoas podem não ter tecto mas têm a mesma sensibilidade ao risco e ao futuro que praticamente todos nós temos, ser Pessoa Sem Abrigo não é um atestado de estupidez ou de inércia, é infelizmente uma mistura de infelizes acasos da vida.

 Onde durante anos na Av. Liberdade, havia lagos com patos e cisnes, há agora pessoas a viver dentro das casas dessas aves, é difícil de imaginar, mas estão lá vários num espaço curto e desumano.

 Partilho ainda convosco que já de madrugada quando falava com as outras equipas, veio à partilha que dois menores depois de verem que havia terminado a distribuição na gare do oriente, foram ter com a equipa a pedir comida, pois em casa com os pais desempregados e os outros irmão menores já não havia comida e de uma forma discreta e envergonhada pediram se podiam comer. 

 A fome já não é só na rua, é também dentro das nossas casas. 

 Não quero com esta mensagem deixar as pessoas melindradas ou a sentirem-se mal, mas sim quero que todos saibam que há uma realidade e vamos ter que viver com ela e acima de tudo não podemos fechar os olhos, porque sim, há fome em Portugal!

 Equipa B2-3ª »

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