sábado, 11 de agosto de 2018

"Desidealizar a Pobreza"

"Nada do que possa dizer é absoluto. Tudo o que posso ver com os meus olhos pequenos está longe de ser tudo, de ser toda a realidade. E, no entanto, há já as primeiras impressões que ainda não registei em foto ilustrativa por pudor.

Estou neste momento a viver junto a um dos bairros de lata de Nairóbi - Kangemi - e a colaborar numa clínica comunitária pertencente ao projecto Lea Toto. Estas clínicas fazem o diagnóstico de crianças portadoras de HIV e acompanham crianças e famílias de um modo integral procurando garantir o cumprimento do tratamento e o crescimento saudável dessas crianças.

Nos caminhos já feitos neste bairro vi a alegria dos mais novos ao saudar o muzungo (branco) que por lá passa, How are you? repetem todos os dias. Nesses mesmos caminhos já me perguntaram logo ao começar o dia e sem introduções se era feliz, já fui abraçado por um bêbado eufórico que entre o riso de vizinhos me queria levar à força a sua casa. Já vi, por isso, sinais de alegria. Já vi olhares de adolescentes com mais força e futuro de que o vírus que, sem culpa, carregam. Mas já vi e senti muita outra coisa...

Já vi olhares carregados, corpos frágeis e doentes, já me enlameei nas estradas de terra, e vi a dignidade de gente bem vestida mas nem por isso menos batida pela vida. Já senti os cheiros, e percebi às mágoas, a desconfiança e a desesperança. Ninguém escolheria viver aqui. E viver aqui - sem ser dos piores bairros de lata - é como - disseram-me - é viver para 30 a 40 % da população desta pais. Não voltarei a repetir a frase “vivem assim mas às tantas são mais felizes do que nós.” Não há felicidade na lama e no estômago vazio. Não há felicidade em viver ao lado de mansões que são como condomínios fechados, de lhes varrer os quartos e, depois, ao chegar a casa, ter que descalçar os sapatos para não encher de terra suja 3 ou 5m2.

O mundo não pode ser isto. A vida não é isto. A vida é a força dos que aqui lutam, trabalham e vivem. Mas essa força não pode ser a desculpa da pobreza, o fatalismo. Essa força é a resistência contra o que é indigno é a cura de tantos rostos cansados.

Estou aqui de passagem, quase sem tempo para encarnar. Mas sei que há muitas milhas a percorrer, onde quer que possa vir a estar. A primeira é não idealizar a pobreza." José Maria Brito SJ.

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