sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Noite comprida

“Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.”
Se o céu anéis tivesse nem que de eclipses de luas,
e degraus na terra houvesse
quando o arco-íris tocasse a terra e a juntasse às nuvens bordando ruas,
então subiria ao céu e por lá procuraria o esconderijo da lua,
o sítio em que se oculta quando não mostra o luar.
Mandaria que tivesse sempre o rosto luminoso, e a face negra calada,
para que sempre brilhasse.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e que essa luz se espraiasse por longe tocando o mundo.
Que essa chuva escorresse, lavando a dor do sal
das lágrimas que nascem do mal que há em redor oprimindo.
E que a neve branquinha, imaculada e pura, purificasse o olhar de quem só se vê a si.
Porque há uma noite comprida, de uma ansiedade vivida, em que o mal ataca o bem,
e que me deixa perdida, dormente e nauseada,
cortada e a sangrar, ferida por fora e por dentro.
Pois que eu, sufocando um lamento,
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho.
E foi tal o meu estertor que até as nuvens coraram tingindo a areia da praia,
e a fímbria do mar, e o meio do mar, de sangue se cobriram,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.
É como cicuta que rói, que envenena e mata todo o mundo e o apodrece,
uma maldade latente, uma crueldade vigente, no fundo da alma humana,
que sem respeito e amor, vai roubando a dignidade,
abrindo brechas e rombos ao pobre de qualquer cor.

Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Que a negou à boca do pobre,
e o arrastou pela lama,
que o abusou nessa cama,
e lhe desfechou facadas cruas, cruéis,
a esmo, com lança de baioneta,
deixando a porta aberta
à chacina e às injustiças sociais.
Maldito seja quem não vê
e quem lava as suas mãos, pensando-as imaculadas.
E aviltado seja aquele que, sem dó nem piedade,
rouba até o sol ao que já mais nada tem.
Pois onde não há justiça,
só a caridade, o amor, a solidariedade, são o único bem.

Ai, se o céu tivesse anéis,
daqueles com que eu soubesse que revolveria o mundo,
dentro deles, descendo, rodopiaria e nunca os largaria enquanto o bem não surgisse,
enquanto o mal não saísse, até que vagueasse errante, sem encontrar poiso algum.
E se degraus na terra encontrasse, daqueles por onde subisse para procurar uma luz,
eu calcorrearia o céu em busca do sol poente,
e quando o encontrasse, pediria que sempre luzisse,
e que nunca mais se escondesse,
que a terra precisa de luz.

M. Fa. R.
in:
EscreVIvendo

Inspirado no poema de Herberto Helder, Se houvesse degraus na terra...

8 Comments:

Anónimo said...

Antes de mais, brigado pela visita ao meu CR. Demorei-me por aqui a ler alguns posts anteriores e gostei muito do que li. Parabéns!

xistosa, josé torres said...

Do grande Herberto Helder recordo:

"Há gente assim, tão pura.
Recolhe-se com a candeia de uma pessoa.
Pensa, esgota-se, nutre-se desse quente silêncio.
Há gente que se apossa da loucura, e morre, e vive.
Depois levanta-se com os olhos imensos
e incendeia as casas, grita abertamente as giestas,
aniquila o mundo com o seu silêncio apaixonado.

Amam-me, multiplicam-me.
Só assim eu sou eterno.“

Não sei se nos devemos aventurar em subir tão alto.
A Lua já não é assim tão mítica e na Terra podemos assentar os pés.

Uma boa semana.

C Valente said...

Gostei do que li
Saudações amigas

Je Vois La Vie en Vert said...

Ah se....
Fazia-se tantas coisas !
Só podemos..tentar com toda a nossa energia !
Beijinhos
Verdinha

poetaeusou . . . said...

*
adorei,
vou esquecer
Herberto Helder !
,
marés de estima,
deixe,
,
*

zedeportugal said...

que a terra precisa de luz porque os corações dos homens estão cheios de escuridão.
Foi talvez por saber isso, por conhecer essa escuridão e o desespero que a acompanha, que Jesus um dia afirmou: «Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não andará nas trevas, mas terá a luz da vida.» (João 8, 12)

Lindíssimo poema. Já tinha visitado e lido, mas não comentei porque fiquei... sem palavras. :) É por isso que só agora comento.

Beijinho.

Ana Borges said...

Chego aqui atrás de um comentário seu no Bolinas e quero cumprimentar esta iniciativa. Mas também deixo uma critica. O bloger referiu-se aos "jogos de palavras" do post "Há Pobres e pobres". Mas aqui tb proliferam os jogos de palavras. Detenho-me sobre os apelos; "Ajudar o Paquistão". Antes tinhamos ajudado o Haiti, o Siri Lanka, a Somália, o Bangla Desh. E depois de tanta ajuda o que é que mudou ? As comunidades passaram a dar mais atenção aos locais onde se instalam, como constroem, como vivem ? Devo dizer que tenho no meu percurso alguns anos dedicados á ajuda além fronteiras. Já observei comunidades remediadas com pessimas condições de vida e outras bem mais pobres com condições de vida muito aceitáveis.Ao nivel da higiene e da saude publica por exemplo, isso acontece. E houve momentos do meu trabalho em que duvidei imenso da efectividade do mesmo. Senti-me como certas mães que não deixam crescer os filhos quando por sistema os ajudam a resolver da pior forma todas as asneiras. O meu mais novo estourou nuns acessórios para a BTT o orçamento dos livros para o novo ano escolar escolar. É suposto fazer uma cena e comprar-lhe os livros ou deixo-me estar quieta e ele que resolva a embrulhada ?

Cumprimentos a todos.

fa_or said...

Cada qual só pode lutar com as armas que tem. Quanto mais e melhores forem as armas (capacidades) que se tem, e se bem direccionadas ao alvo, maiores as probabilidades de sucesso. É claro que por vezes se dispara em todas as direcções e nem sempre com as melhores armas, por vezes são apenas as que dispomos, e o alvo pode ser demasiado distante que não seja possível lá chegar.

Muitas vezes, quem tem as melhores armas = capacidades, desleixa-se na sua utilização, ou não está nem aí para uma luta, uma causa. E isso é muito pior.
É por isso que o mundo está como está: porque muita gente acha que o mal dos outros não é problema nosso.

Obrigada a todos!

:)

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